quarta-feira, 15 de julho de 2020

O troco da Quarentena




    Foi no Papillon. Não, foi numa série da Netflix. Na verdade não me lembro, mas hoje entendo exatamente o que a cena dizia: antes de entrar prá solitária (cela individual onde o preso é colocado por indisciplina – uma tortura, é fato) o guarda que acompanhava o sujeito dava prá ele uma moeda.

    Hoje eu sei prá que serve aquela moeda.

   Aquela moeda serve para o prisioneiro contar ao atirá-la no chão e pegar imediatamente. Ao fazer isso, ele se obriga a pensar na figura dos números, estabelecer foco e concentração, agachar várias e várias vezes, lubrificando articulações, pondo o sangue prá funcionar, o cérebro prá pensar e o corpo prá mexer. É um modo de passar o tempo, de ter um alvo que não a ensurdecedora batalha de vozes que habitam os universos sempre tão inexplorados de nossa solidão.

    Quarentena, isolamento, pandemia. Combinação perfeita para o desencontro de si.

    A situação é perfeita para o caos: o isolamento social pela quarentena nos leva à distância, que faz crescer a anomia, principalmente se você começa a se dar conta do mundo que derrete na sua frente. Eu vou conseguir fazer home office? Meu trabalho vai continuar existindo depois que isso passar? Ainda que passe, quantas sequelas ficam disso tudo: a precarização do trabalho já marcava presença, mas agora ela parece se aprofundar.

    Ansiedade. Incerteza e mais ansiedade. Essa moda veio prá ficar.

    Não sei o que responder diante de tudo isso. As profissões são muito diferentes, as contingências são muito diferentes, as capacidades de adaptação de cada empresa e de cada profissional igualmente o são.
    O que sei é que a resposta está naquela cena da moeda do filme: é preciso ter ritos, metas muito precisas, pequenas e facilmente realizáveis, é preciso que nosso cotidiano esteja repleto de atividades padronizadas como o cronograma diário dos primeiros monges beneditinos cujo lema era “ora et labora” (reza e trabalha). Com o advento do home office, a gente virou um bando de monge e essa vida monástica pressupõe disciplina. Tem até aquela música do Legião Urbana “disciplina é liberdade”... pois é, agora tudo faz sentido. 

    Então viramos máquinas? Engolimos o relógio?

   Com certeza. Mas fique tranquilo, isso já aconteceu há muitos séculos atrás. Isso começou no final do século dezoito com a revolução industrial: não sou eu quem mostra isso, mas historiadores como Michel Foucault e o professor Edgar de Decca. Nos trabalhos de ambos, podemos compreender como nossa sociedade se passou do agrário ao urbano/fabril impondo disciplina corpórea, educação dos gestos e controle.
    
     Mas o controle não era a saída?

    Sim. O controle de nosso tempo é a saída para o controle que a realidade nos impõe. Controle ativo como resistência ao tempo do trabalho nos imposto que, em home office nunca se esgota e quer nos esmagar invadindo as horas de lazer e descanso. Não acho gostoso nem utópico, mas a única maneira de individualmente suportarmos o caos que nos impera é sobrepondo nossa autodisciplina sobre o controle que as empresas nos imprimem. Para os autônomos e, principalmente, aos que se comunicam e vendem pelas redes sociais (facebook instagram e youtube, por exemplo) o trabalho é interminável e lá vai você ser toda vez cooptado pelo canto da sereia, atropelando refeições, encontros afetivos, horas de sono, ou ainda as terríveis zappiadas da madrugada, mesmo deitados na cama.
    Não dá. No caso das redes é mais grave ainda: ou a gente controla as redes ou as redes controlam a gente. Mas sobre as redes eu falo outro dia, porque é preciso criarmos, como sociedade, um conjunto de protocolos para melhor nos relacionarmos com essa ferramenta essencial, mas, infelizmente, fonte também de inesgotável ansiedade, promoção de notícias falsas (fake news) e discursos de ódio.
  Para sobrevivermos ao mundo quarentena, ritos são fundamentais. Protocolos de trabalho e de descanso, atividades físicas simples (porque preservam corpo e mente) são indispensáveis. Disciplina é liberdade, mesmo.
     Do contrário, as moedas, por tradição, se transformam nas oferendas que os gregos davam ao barqueiro Caronte, o famoso barqueiro da morte.
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     Se você puder, fique em casa. Se não puder, tome todas as medidas de distanciamento e higiene possíveis no seu cotidiano. Se você precisa sair todos os dias, creio que seu trabalho deve ser de fundamental importância para aqueles que podem estar plenamente isolados.
    Se você for um desses heróis: entregadores, enfermeiros, médicos, agricultores, trabalhadores de supermercados e redes de abastecimento, meu muito obrigado.

     Tamo junto!
Prof. Fábio Casemiro 




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