...Sob o pecado mortal dos spoilers, amém...
Este texto é um texto para não
ser lido porque não é escrito nas redes do Mark,
não se uberiza, não se reduz às polarizações do ódio tão cultivadas: ódio é a
gasolina do capitalismo, mas sim... Este é mais um texto sobre aquele filme do
qual já nem precisamos dizer o nome. O filme de Adam McKay já é o novo Voldemort deste “novo” ano que se
inicia.
Pobre contemporaneidade, entre
likes e deslikes, vence o filme que já trazia a própria chave de leitura hoje:
não interessa a obra, mas a polarização que gera. A polarização é a gasolina
que toca o motor, é também nossa explosão meteórica...amém.
Quem sabe das coisas é Oscar Wilde
que já na virada do século passado dizia no prefácio do seu Dorian Gray: “A antipatia do século XIX
pelo Realismo é a raiva de Caliban ao ver sua cara no espelho. A antipatia do
século XIX pelo Romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no
espelho.” ...E, um pouco mais adiante, no mesmo prefácio: “É o espectador, e
não a vida, que a arte realmente reflete.”...
Pronto, Wilde matou a charada do
século XXI já no final do século XIX: no futuro, todo mundo engoliria o
narcisismo do mundo oitocentista e seria incapaz de se deleitar com a
capacidade da arte de rir de seus espectadores...rs... Ponto pro Wilde.
Mas a final, o que é um meteoro?
Segundo os dicionários (e os astrônomos), meteoro é todo fenômeno que ocorre na
atmosfera (arco-íris e chuva, pasmem, são meteoros). Daí que os meteoros são,
desde nossos tempos mais antigos, os tataravôs dos óvnis, dos ufos, dos discos
voadores... É do céu que o ser humano julga ter vindo, é para o céu que o ser
humano julga retornar (nas mais diferentes culturas, desde os cristãos até os
indígenas brasileiros).
O filme Não olhe para cima mexe com algo moderno e antigo, científico e
mítico: o corpo intergaláctico (asteroide) quando se torna visível (e nos
extermina) se torna um meteoro. Ele é nossa última divindade que vem dos céus e
nós, incapazes de devorarmos nossos deuses, morremos por ele (oferecendo nossa
miséria como última oferenda)...rs.
Tô viajando? Não. Parece que
quase ninguém comentou (nessa nauseabunda terra de guerra que são as redes antissociais) que o filme foi programado
para vir a público somente no dia 24 de dezembro de 2021. E esse é um elemento
paratextual muito importante. O filme foi anunciado semanas antes de sua data
de lançamento, preparando assim o terreno para que fosse recebido numa
determinada data que, bem sabemos, trouxe uma carga mítica muito poderosa,
destaco: 24 de dezembro de 2021 foi a noite de natal, certamente, a mais
intensa deste nosso novo século XXI, porque todos nós fomos “convidados” à
celebração de nossas vidas, afirmando nossa sobrevivência diante do flagelo da
morte. Tanto em luta, como em luto, esse natal ganhou um sabor jamais
experimentado pelo mundo contemporâneo desde a pandemia de gripe espanhola e
desde as duas Grandes Guerras Mundiais... O filme queria ser visto no
Natal de 2021, não é nenhum exagero atentar-se para esse fato.
Daí que o filme mostra dois
sacerdotes da ciência contemporânea anunciando a “anti-boa nova”: essa nossa
estrela de Belém (do século XXI) será a última estrela de Belém. Nossos dois
reis magos são cientistas “ateus” que funcionam também como cavaleiros do
apocalipse: depois da peste, a morte.
Esta é a maior e a primeira caricatura
que o filme imprime. À luz dessa caricatura mestra, todo o ocidente enquanto
epicentro da salvação cristã é questionada, toda racionalidade hegemônica é
revelada em sua fragilidade e o planeta explode pela competência sarcástica do
mito (a estrela cadente/meteoro) que parece responder à máxima nietzschiana: “Ora,
ora... se o homem em sua sabença julga matar o divino, então tome estrela
cadente como resposta divina à tua arrogância”... E deus ri à socapa...
Compreendido à luz dessa primeira
grande caricatura (e articulando-se à ela toda a arquitetura de caricaturas que
opera) a força sarcástica do riso se multiplica e, se nos reconhecemos do lado
de cá dessa ópera trágica/bufa, poderemos responder com outra fala do mesmo
bigodudo alemão quando reconhece ele o frágil poder consolador da arte:
Não!
Vós deveríeis primeiro aprender a arte do consolo deste lado de cá – vós deveríeis aprender a rir, meus jovens
amigos, se todavia quereis continuar sendo completamente pessimistas; talvez,
em consequência disso, como ridentes mandeis um dia ao diabo toda a “consoladoria”
metafísica e a metafísica em primeiro lugar! (NIETZSCHE, O Nascimento da Tragédia, Cia das Letras, 2007, pp. 20-21)
Visto por esta chave, que podemos
denominar (como nos mostra Umberto Eco em Interpretação
e Superinterpretação) de “vontade do texto” – a saber, ser lido e
compreendido à luz de paródia da mítica natalina – o filme nos mostra como
nossos dois tronchos reis magos, seguindo a estrela cadente do apocalipse, virão
nos presentear com as joias da verdade.. e nós (no filme ali representados) as atiraremos
prontamente ao lixo, consagrando ali nossa finitude, nossa miséria e,
definitivamente, nos revelando como a paródia mais malsucedida de deus (se
somos a imagem e semelhança do divino, esse deus executa exatamente a mesma
bofetada do engenheiro argonauta, do também odiado filme Prometheus de Ridley Scott).
Sob este prisma da paródia
natalina, a cena final ganha um significado bem divergente do que vem pregando
a crítica mais hypada de nossas “doces”
re-dissociais: o cristianismo de
última hora do cientista, o perdão à poligamia pela esposa, o millennial
pós-pseudo-evangélico puxando a reza, o afro-americano à cabeceira, a cientista
descolada, os bons filhos brancos e obedientes vão todos morrer numa santa ceia
paródica que denuncia a incapacidade da humanidade de operar como organismo
coerente e sólido diante de uma adversidade devastadora e comum.
Essa paródia de santa ceia
crística, contudo, não é simplesmente um fenômeno eventual. Ela foi historicamente
financiada pela grande invenção ocidental, o capitalismo, força construtora de
múltiplas ideologias que operam como véu
de maia à dominação do gado-humano: o bilionário da BASH megacorporação impediu o desvio do asteroide e teve sua sobrevivência
(e dos seus) provisoriamente assegurada pela espaçonave... mas depois serão
devorados pela onipresença do deus-selvagem/natureza em um planeta distante
qualquer (eis que daí ressurge o paradigma “a vingança do deus & os aliens
somos nozes”...rs). Capitalismo é destruição. O objetivo do capitalismo é
destruir a tudo para poder destruir-se em paz!
...E por último, vemos nascer o übermensch nietzschiano, mas igualmente
paródico: um bonachão imbecil negacionista escroto digno dos herdeiros das melhores/piores
republiquetas das Américas...
Dioniso é o deus do drama, da
tragédia, mas da comédia, também. Na Grécia antiga as representações de Dioniso
eram máscaras descabeladas ridentes, penduradas nas épocas festivas por todos
os cantos... além do sorriso próprio do grande deus ridente, seus olhos
espelhavam o horror da górgona, a medusa com seus cabelos de serpente capaz de
petrificar àqueles que encaravam seu horror.
Se não me engano foi Nietzsche (a
partir de Schiller) que disse que a arte tem o poder do escudo de Perseu,
porque espelha o horror que nos petrifica e nos permite encará-lo pelo seu
reflexo... Penso que ninguém tem que gostar ou não de um filme, nem tem
obrigação alguma de ver ou não determinada obra. Às vezes você não é o público
dessa obra e “tá tudo bem”...
O que me impressiona é essa
gasolina de ódio em torno de uma obra de arte... Teve gente brigando com caricatura
(qual o problema? Cêis não assiste filme de super-herói?...rs)... Teve gente
brigando com metáfora (Uai?.... Cêis queria arte sem metáfora????...rs)...
A questão do ódio é que quando ele
toma a linguagem, a linguagem se torna o meteoro ele mesmo. Às vezes, “um filme
é só um filme” (parodiando o tio Freud)...
E quando o ódio vira a linguagem, ninguém mais vê a bela metáfora que mora
naquele meteoro/caricatura... Olham prá cima, olham prá baixo, mas o texto (a
obra, a arte) ...
... isso ninguém quer ver mais, o
ódio venceu a beleza.
Fábio M. Casemiro